segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

É o diabo! Jomar Morais, da Superinteressante


Requintado e com menos poderes, o diabo sobrevive às previsões de que ele não resistiria ao avanço da ciência e reacende no século XXl velhos dilemas da condição humana.


  Ninguém jamais recebeu tantos nomes. Nenhum ser excitou tanto a imaginação humana ao longo dos séculos. Num mundo dominado pela tecnologia, com educação e informação em larga escala, imaginou-se que não haveria mais lugar para ele.  Engano. No alvorecer do terceiro milênio ei-lo aí, vivo e atuante, ainda que transformado e sem os superpoderes de outrora. Ele Asmodeu, Belzebu, Azazel, Belial, entre os muitos nomes com os quais os antigos hebreus o rotularam. Ou Iblis, como dizem os muçulmanos. Ou Arimã, como o chamavam os seguidores de Zoroastro, na Pérsia. Ou simplesmente, como bem o sabem os brasileiros temerosos de mencionar-lhe o nome, o Rabudo, o Tinhoso, o Beiçudo, o Pai da Mentira, o Cão. Eis Satanás, o Demo, o Diabo, a mais intrigante das figuras que povoam o imaginário humano. 
  O Diabo chega ao século XXI deitado sobre a fama arrecadada ao longo do tempo. É verdade que ele não aparece mais em murais com a aparência grotesca de um bode alado, coroado de enormes chifres, com rabo de dragão e olhos nas asas, na barriga e no traseiro. É que há muito seu nome foi retirado do Pai Nosso, a principal oração cristã. Também já não é acusado em toda parte de estar por trás das doenças, das hecatombes, das tragédias cotidianas. O Diabo teve que ceder aos progressos da ciência, à liberdade de pensamento e ao avanço da razão sobre a superstição. Mas é inegável que, mesmo reduzido à idéia original que o criou, ele continua influente em nossos dias, qualquer que seja a classe social, o nível cultural ou a nacionalidade das pessoas. Não é exagero dizer que, de certa forma, o velho e mau Satã tem sido revalorizado nos últimos tempos. Acompanhe a história, a vida e a relação do Demo com outras religiões.

A história do Demo

  Historicamente, Satã, do jeito como o visualizamos hoje no Ocidente, um ser que concentra em si a maldade absoluta  é resultado de uma longa gestação psicológica na qual os arquétipos (imagens psíquicas do inconsciente coletivo que, na concepção do psicólogo suíço Carl Jung, estruturam modos de compreensão comuns aos indivíduos de uma comunidade) do mal foram ganhando formas concretas tanto a partir de sincretismo por meio da mistura da idéia do mal que há nas diversas religiões quanto de processos de transferência em que a pessoa descarrega num mito, numa figura externa, todo o mal que enxerga dentro de si. Assim, o Tinhoso fica responsável por tudo aquilo que consideramos ruim ou maléfico: o ódio, a raiva, o medo. Enquanto o seu oposto, Deus, personifica tudo o que consideramos bom ou benéfico: perdão, compaixão, solidariedade.
  O Demônio fascina a humanidade e é uma peça necessária, sem a qual nenhuma sociedade humana jamais conseguiu viver, porque ele nos ajuda a identificar e a exorcizar nossos impulsos primários. É demoníaco tudo aquilo que lembra ao homem que ele é um animal: a excreção, o vômito, a violência, a doença, a morte, o aspecto grotesco do sexo. Ao lado disso, é divino tudo aquilo que dá ao homem a impressão de que ele pode colocar-se acima dos outros animais: o amor, a inteligência, a renún-cia aos instintos básicos, o aspecto sublime do sexo. A função do Diabo como válvula de escape está muito clara, por exemplo, no Novo Testamento, base da doutrina cristã, em que há mais citações do mal que do bem. Mais referências a Satã que a Deus. No Cristianismo a presença do mal é essencial como em nenhuma outra religião, diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade de Campinas (Unicamp).
  A primeira representação do Rabudo teria surgido no século VI a.C., na Pérsia. O profeta Zoroastro descreveu a figura de Arimã, o príncipe das trevas em seu conflito com Mazda, o príncipe da luz. Eram essas duas divindades, que expressam a polaridade existente no universo e dentro da própria alma humana, que regiam o mundo de Zoroastro. Durante o cativeiro na Babilônia, os hebreus tiveram contato com o masdeísmo persa, religião que divinizava os seres naturais. Segundo alguns historiadores, isso foi fundamental para a concepção do que viria a ser o Satã do Judaísmo e do Cristianismo. Na antiga língua hebraica, Satanás quer dizer acusador, caluniador, aquele que põe obstáculos. E foi assim, sem a face aterrorizante que ganharia mais tarde, que o Diabo estreou no Velho Testamento. Agia como um colaborador de Jeová, o Deus judaico-cristão, para testar a lealdade ou castigar os seus escolhidos. Jeová, por exemplo, determinou a Satã que precipitasse o desobediente rei Saul no poço da depressão.
  Sob a mesma autorização divina, o Satã infligiu perdas e sofrimentos ao rico e fiel Jó, no desenrolar de uma aposta na qual Jeová jogou todas as fichas na lealdade do seu servo.
Conheça a vida de Lúcifer
  Era uma vez um arcanjo belo e luminoso. Daí o seu nome, Lúcifer, que, na origem latina, significa "portador da luz". Era o preferido de Deus, espécie de assessor direto numa época em que o Criador andava muito ocupado com a ambiciosa missão de criar o universo. Era também sábio e envolvente, conhecia todos e os segredos mais recônditos da vida.
  Segundo poeta italiano Dante Alighieri, autor dos versos da Divina Comédia, a glória de Lúcifer durou somente 20 segundos. Foi o tempo necessário para que o orgulho lhe subisse a cabeça, levando-o a se opor aos desígnios divinos. Na primeira tentativa de golpe de Estado de que se tem notícia, o arcanjo convenceu um terço dos habitantes do céu a rebelar-se contra o Criador. Houve guerra nas alturas, mas Lúcifer perdeu feio e de forma desmoralizadora. Batidos por tropas angelicais comandadas pelo arcanjo Gabriel, ele e seus aliados foram precipitados nas profundezas do mundo, onde formaram um reino dissidente, mais conhecido como inferno.
  E assim nasceu o Diabo, o Senhor do Mal, vaidoso, astucioso, eternamente rebelado contra tudo o que consta dos planos divinos, aí incluindo-se o homem e as virtudes que o aproximam do Criador.


O diabo e as religiões

Catolicismo
  Após as mudanças iniciadas no Concílio Vaticano II, há quatro décadas, o Diabo perdeu as feições físicas monstruosas que apavoravam os fiéis e passou a ser encarado como a causa do mal, cuja ação entre os homens é de natureza essencialmente moral. Mas a Igreja continua a vê-lo como uma entidade que concentra o mal absoluto, inapelável. Algumas curiosidades bizarras sobre o Pai da Mentira na fé católica: o número 666, que costuma identificar a Besta, o anticristo (o grande disfarce de Satã para enganar os crentes e dominar o mundo), estava escrito na testa do horripilante animal alado, personagem das visões do apóstolo João que deram origem ao último livro do Novo Testamento: o Apocalipse. Já o cheiro de enxofre foi atribuído ao Demo por se tratar de uma essência horrível e irritante. Na Idade Média, acreditava-se que o inferno era não apenas um lugar quente, abafado e animado por danações horrendas. Havia também pântanos fumegantes, onde as almas dos pecadores ardiam em soluções de enxofre.

Evangelismo
Para a maioria das denominações evangélicas, Satanás tem individualidade e atua como o grande inimigo do Evangelho de Jesus e seus seguidores. Os neopentecostais, que surgiram a partir da década de 70, superestimam os seus poderes e fazem do combate ao Demônio o foco de suas atividades. Segmentos modernizantes, como algumas igrejas batistas nos Estados Unidos e no Brasil, já admitem que o mal reside nas entranhas do homem, como a sombra junguiana, e contestam a existência do Maligno.


Judaísmo
  Não aceita a corporificação do Diabo. Satanás seria o grande adversário, o pérfido acusador, o ardiloso comerciante do mal que, conforme a tradição judaica, é usado por Deus para testar o homem. O bem e o mal procedem de impulsos humanos.

Islamismo
  O Diabo na fé islâmica é individual e corporificado. O Demo tem praticamente as mesmas atribuições do seu sinistro similar na fé católica.
Espiritismo
  A doutrina de Allan Kardec (místico francês que formulou as bases doutrinárias do Espiritismo no século XIX), popularizada no Brasil, não admite a existência do mal absoluto nem a sua individualização em Satanás. O mal, visto como uma contingência da experiência evolutiva e das vivências terrenas de cada indivíduo, cede ao bem à medida que os espíritos se depuram através de sucessivas reencarnações.
Budismo
  Os budistas não personificam Deus e muito menos o Diabo, um conceito inexistente na doutrina religiosa do Budismo. O mal é resultado da mente inquieta ante a ilusão do eu e das formas do mundo material. Pensamentos e atos podem gerar o carma que prende o homem à longa fieira das reencarnações. O exercício cotidiano, permanente e humilde, da compaixão e do desapego o liberam desse círculo.

  A imaginação criativa na Idade Média não se limitou a conceber uma figura horripilante para Satanás. Imaginou toda uma estrutura para o inferno. E o Diabo teve que delegar poderes a auxiliares, às vezes confundidos com o próprio chefe, como Pazuzu, que estrelou o filme O Exorcista. A seguir, o organograma do Inferno:
Belial: É considerado o demônio da arrogância e da loucura. Há quem o veja como a besta do Apocalipse
Nergal: Demônio sumeriano que, no inferno cristão, assumiu o comando da polícia

Quem é quem no inferno

Asmodeu: Demônio hebreu da ira e da luxúria 
Astaroth: Ex-querubim, é tido como o tesoureiro do inferno
Diabo: O rei, o chefão. Trata-se de Lúcifer, o ex-arcanjo preferido de Deus, expulso do céu por causa do seu orgulho e ambição
Baalberith: Demônio do assassinato e da blasfêmia, era líder dos querubins celestes. Tornou-se secretário de Lúcifer
Belzebu: O príncipe dos demônios. Ao lado de Leviatã, estimula o orgulho e a heresia entre os homens
Abramalech: Responsável pelo guarda-roupa de Lúcifer, espécie de mordomo
Pazuzu: O rei dos espíritos malignos
Círculos infernais

Na Divina Comédia, Dante Alighieri estipulou uma ordenação do inferno em nove círculos, de acordo com a gravidade de cada pecado
Limbo
Onde ficam as almas de crianças mortas sem batismo e figuras do paganismo, como Homero e Platão
Círculo Segundo
Uma ventania incessante arrasta os lascivos e luxuriosos
Círculo Terceiro
Os glutões são fustigados pela chuva e dilacerados por Cérbero, o cão do inferno
Círculo Quarto
Gastadores compulsivos e unhas-de-fome são obrigados a rolar enormes pedras
Círculo Quinto
Os esquentadinhos e iracundos quase se  afogam no Éstige, o rio do inferno


Círculo Sexto
Sepulcros inflamados servem de moradia eterna para os heréticos
Círculo Sétimo
O Minotauro vigia o local onde assassinos, suicidas e escroques violentos submergem em sangue fervente
Círculo Oitavo
Rufiões, fraudadores, sedutores e cínicos são açoitados e imersos em fezes
Círculo Nono
Traidores de amigos, irmãos e da pátria habitam o último círculo.

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