Requintado
e com menos poderes, o diabo sobrevive às previsões de que ele não resistiria
ao avanço da ciência e reacende no século XXl velhos dilemas da condição humana.
Ninguém jamais recebeu tantos nomes. Nenhum
ser excitou tanto a imaginação humana ao longo dos séculos. Num mundo dominado
pela tecnologia, com educação e informação
em larga escala, imaginou-se que não haveria mais lugar para ele. Engano. No alvorecer do terceiro milênio
ei-lo aí, vivo e atuante, ainda que transformado e sem os superpoderes de outrora. Ele Asmodeu, Belzebu, Azazel, Belial,
entre os muitos nomes com os quais os antigos hebreus o rotularam. Ou
Iblis, como dizem os muçulmanos. Ou Arimã, como o chamavam os seguidores de
Zoroastro, na Pérsia. Ou simplesmente, como bem o sabem os brasileiros
temerosos de mencionar-lhe o nome, o Rabudo, o Tinhoso, o Beiçudo, o Pai da
Mentira, o Cão. Eis Satanás, o Demo, o Diabo, a mais intrigante das figuras que
povoam o imaginário humano.
O Diabo chega ao século XXI deitado sobre a
fama arrecadada ao longo do tempo. É verdade que ele não aparece mais em
murais com a aparência grotesca de um bode alado, coroado de enormes chifres,
com rabo de dragão e olhos nas asas, na barriga e no traseiro. É que há muito seu nome foi retirado do Pai Nosso, a
principal oração cristã. Também já não é acusado em toda parte
de estar por trás das doenças, das hecatombes, das tragédias cotidianas. O
Diabo teve que ceder aos progressos da ciência, à liberdade de pensamento e ao avanço da razão sobre a superstição.
Mas é inegável que, mesmo
reduzido à idéia original que o criou, ele continua influente em nossos dias,
qualquer que seja a classe social, o nível cultural ou a nacionalidade das
pessoas. Não é exagero dizer que, de certa forma, o velho e mau Satã
tem sido revalorizado nos últimos tempos. Acompanhe a história, a vida e a
relação do Demo com outras religiões.
A história do Demo
Historicamente, Satã, do jeito como o
visualizamos hoje no Ocidente, um ser que concentra em si a maldade absoluta
é resultado de uma longa gestação psicológica na qual os arquétipos
(imagens psíquicas do inconsciente coletivo que, na concepção do psicólogo
suíço Carl Jung, estruturam modos de compreensão comuns aos indivíduos de uma comunidade) do mal foram ganhando formas
concretas tanto a partir de sincretismo por meio da mistura da idéia do
mal que há nas diversas religiões quanto de processos de transferência em que a
pessoa descarrega num mito, numa figura externa, todo o mal que enxerga dentro
de si. Assim, o Tinhoso fica responsável por tudo aquilo que consideramos ruim
ou maléfico: o ódio, a raiva, o medo. Enquanto o seu oposto, Deus, personifica
tudo o que consideramos bom ou benéfico: perdão, compaixão, solidariedade.
O Demônio fascina a
humanidade e é uma peça necessária, sem a qual nenhuma sociedade
humana jamais conseguiu viver, porque ele nos ajuda a identificar e a exorcizar
nossos impulsos primários. É demoníaco tudo aquilo que lembra ao
homem que ele é um animal: a excreção, o vômito, a violência, a
doença, a morte, o aspecto grotesco do sexo. Ao lado disso, é divino
tudo aquilo que dá ao homem a impressão de que ele pode colocar-se acima dos
outros animais: o amor, a inteligência, a renún-cia aos instintos básicos, o
aspecto sublime do sexo. A função do Diabo como válvula de escape está muito clara, por exemplo, no Novo Testamento, base da
doutrina cristã, em que há mais citações do mal que do bem. Mais referências a
Satã que a Deus. No Cristianismo a presença do mal é essencial como
em nenhuma outra religião, diz o filósofo Roberto Romano, da
Universidade de Campinas (Unicamp).
A primeira representação do Rabudo teria
surgido no século VI a.C., na Pérsia. O profeta Zoroastro descreveu a figura de
Arimã, o príncipe das trevas em seu conflito com Mazda, o príncipe da luz. Eram
essas duas divindades, que expressam a polaridade existente no universo e
dentro da própria alma humana, que regiam o mundo de Zoroastro. Durante o cativeiro na Babilônia, os hebreus tiveram contato
com o masdeísmo persa, religião que divinizava os seres naturais. Segundo
alguns historiadores, isso foi fundamental para a concepção do que viria a ser
o Satã do Judaísmo e do Cristianismo. Na antiga língua hebraica, Satanás quer
dizer acusador, caluniador, aquele que põe obstáculos. E foi assim, sem a face
aterrorizante que ganharia mais tarde, que o Diabo estreou no Velho Testamento.
Agia como um colaborador de Jeová, o Deus judaico-cristão, para testar a
lealdade ou castigar os seus escolhidos. Jeová, por exemplo, determinou a Satã
que precipitasse o desobediente rei Saul no poço da depressão.
Sob a mesma autorização divina, o Satã
infligiu perdas e sofrimentos ao rico e fiel Jó, no desenrolar de uma aposta na
qual Jeová jogou todas as fichas na lealdade do seu servo.
Conheça
a vida de Lúcifer
Era uma vez um arcanjo belo e luminoso. Daí o
seu nome, Lúcifer, que, na origem latina, significa "portador da
luz". Era o preferido de Deus, espécie de assessor direto numa época em
que o Criador andava muito ocupado com a ambiciosa missão de criar o universo.
Era também sábio e envolvente, conhecia todos e os segredos mais recônditos da
vida.
Segundo
poeta italiano Dante Alighieri, autor dos versos da Divina Comédia, a
glória de Lúcifer durou somente 20 segundos. Foi o tempo necessário para que o
orgulho lhe subisse a cabeça, levando-o a se opor aos desígnios divinos. Na
primeira tentativa de golpe de Estado de que se tem notícia, o arcanjo
convenceu um terço dos habitantes do céu a rebelar-se contra o Criador. Houve
guerra nas alturas, mas Lúcifer perdeu feio e de forma desmoralizadora. Batidos
por tropas angelicais comandadas pelo arcanjo Gabriel, ele e seus aliados foram
precipitados nas profundezas do mundo, onde formaram um reino dissidente, mais
conhecido como inferno.
E assim nasceu o Diabo, o Senhor do
Mal, vaidoso, astucioso, eternamente rebelado contra tudo o que consta dos
planos divinos, aí incluindo-se o homem e as virtudes que o aproximam do
Criador.
O
diabo e as religiões
Catolicismo
Após as mudanças
iniciadas no Concílio Vaticano II, há quatro décadas, o Diabo perdeu as feições
físicas monstruosas que apavoravam os fiéis e passou a ser encarado como a
causa do mal, cuja ação entre os homens é de natureza essencialmente
moral. Mas a Igreja continua a vê-lo como uma entidade que concentra o mal
absoluto, inapelável. Algumas curiosidades bizarras sobre o Pai da Mentira na
fé católica: o número 666, que costuma identificar a Besta, o anticristo
(o grande disfarce de Satã para enganar os crentes e dominar o mundo), estava
escrito na testa do horripilante animal alado, personagem das visões do
apóstolo João que deram origem ao último livro do Novo Testamento: o
Apocalipse. Já o cheiro de enxofre foi atribuído ao Demo por se tratar de uma
essência horrível e irritante. Na Idade Média, acreditava-se que o inferno era
não apenas um lugar quente, abafado e animado por danações horrendas. Havia
também pântanos fumegantes, onde as almas dos pecadores ardiam em soluções de
enxofre.
Evangelismo
Para a maioria das denominações evangélicas, Satanás tem individualidade e
atua como o grande inimigo do Evangelho de Jesus e seus seguidores. Os
neopentecostais, que surgiram a partir da década de 70, superestimam os seus
poderes e fazem do combate ao Demônio o foco de suas atividades. Segmentos
modernizantes, como algumas igrejas batistas nos Estados Unidos e no Brasil, já
admitem que o mal reside nas entranhas do homem, como a sombra junguiana, e
contestam a existência do Maligno.
Judaísmo
Não aceita a corporificação
do Diabo. Satanás seria o grande adversário, o pérfido acusador, o ardiloso
comerciante do mal que, conforme a tradição judaica, é usado por Deus
para testar o homem. O bem e o mal procedem de impulsos humanos.
Islamismo
O Diabo na
fé islâmica é individual e corporificado. O Demo tem
praticamente as mesmas atribuições do seu sinistro similar na fé católica.
Espiritismo
A doutrina de Allan Kardec (místico
francês que formulou as bases doutrinárias do Espiritismo no século XIX),
popularizada no Brasil, não admite a existência do mal absoluto nem a sua
individualização em Satanás. O mal, visto como uma contingência da experiência
evolutiva e das vivências terrenas de cada indivíduo, cede ao bem à medida que
os espíritos se depuram através de sucessivas reencarnações.
Budismo
Os budistas não personificam Deus e
muito menos o Diabo, um conceito inexistente na doutrina religiosa do Budismo.
O mal é resultado da mente inquieta ante a ilusão do eu e das formas
do mundo material. Pensamentos e atos podem gerar o carma que prende o homem à
longa fieira das reencarnações. O exercício cotidiano, permanente e humilde, da
compaixão e do desapego o liberam desse círculo.
A imaginação criativa na Idade Média não se
limitou a conceber uma figura horripilante para Satanás. Imaginou toda uma
estrutura para o inferno. E o Diabo teve que delegar poderes a auxiliares, às
vezes confundidos com o próprio chefe, como Pazuzu, que estrelou o filme O
Exorcista. A seguir, o organograma do Inferno:
Belial: É considerado o demônio da arrogância e da loucura. Há quem
o veja como a besta do Apocalipse
Nergal: Demônio sumeriano que, no inferno cristão, assumiu o comando da
polícia
Quem é quem no
inferno
Asmodeu: Demônio hebreu da ira e da
luxúria
Astaroth: Ex-querubim, é tido como o tesoureiro do inferno
Diabo: O rei, o chefão. Trata-se de Lúcifer, o ex-arcanjo preferido de
Deus, expulso do céu por causa do seu orgulho e ambição
Baalberith: Demônio do assassinato e da blasfêmia, era líder dos querubins
celestes. Tornou-se secretário de Lúcifer
Belzebu: O príncipe dos demônios. Ao lado de Leviatã, estimula o orgulho e
a heresia entre os homens
Abramalech: Responsável pelo guarda-roupa de Lúcifer, espécie de mordomo
Pazuzu: O rei dos espíritos malignos
Círculos infernais
Na Divina Comédia, Dante Alighieri estipulou uma
ordenação do inferno em nove círculos, de acordo com a gravidade de cada pecado
Limbo
Onde ficam as almas de crianças mortas sem batismo e figuras do
paganismo, como Homero e Platão
Círculo Segundo
Uma ventania incessante arrasta os lascivos e luxuriosos
Círculo Terceiro
Os glutões são fustigados pela chuva e dilacerados por Cérbero, o cão do
inferno
Círculo Quarto
Gastadores compulsivos e unhas-de-fome são obrigados a rolar enormes pedras
Círculo Quinto
Os esquentadinhos e iracundos quase se afogam no Éstige, o rio
do inferno
Círculo Sexto
Sepulcros inflamados servem de moradia eterna para os heréticos
Círculo Sétimo
O Minotauro vigia o local onde assassinos, suicidas e escroques violentos
submergem em sangue fervente
Círculo Oitavo
Rufiões, fraudadores, sedutores e cínicos são açoitados e imersos em fezes
Círculo Nono
Traidores de amigos, irmãos e da pátria habitam o último círculo.
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