Exposição e livro mostram a
construção da imagem nacional em fotografias como a reproduzida ao lado,
que registra as obras da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré no coração da
Amazônia
Por Boris Kossoy*
No
século XIX, com o desenvolvimento da fotografia, as imagens visuais
técnicas ingressaram na vida cotidiana do homem e da sociedade. Embora
seu valor documental seja insubstituível como meio de informação, é
importante que nos perguntemos sempre: qual é a verdade que nos mostra a
imagem fotográfica? A verdade do registro da aparência, da indiscutível
semelhança com o objeto-modelo materializada por um sistema de
representação visual e moldada segundo um processo de
criação/construção. De realidades. Um documento, pois que se presta a
comprovar múltiplas “verdades”: históricas, ideológicas, políticas,
étnicas, religiosas. É nesse terreno de ambiguidades interpretativas que
desliza a imagem fotográfica, ao mesmo tempo em que preserva a memória
visual da cena passada, uma fonte histórica que não escapa do necessário
exame crítico.
A
partir de tal reflexão pensamos a fotografia e também a possibilidade
de se lançar um olhar ao passado através e a partir das imagens da
câmera, que é o objeto do projeto “Um olhar sobre o Brasil — a
fotografia na construção da imagem da nação: 1833-2003” (Objetiva). Além
de compor a obra, as fotos selecionadas no volume compõem uma exposição
homônima, que está em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo,
até 23 de janeiro.
Procurou-se, neste projeto, reunir um corpus
documental que registrasse aspectos expressivos de fatos sociais,
políticos, culturais, religiosos, científicos, artísticos, entre tantos
outros, fios que tecem a trama histórica de uma nação. No entanto, as
fontes fotográficas não se bastam em si mesmas; é preciso dar “voz” às
mensagens codificadas nas imagens, ultrapassar sua tênue superfície
iconográfica e buscar por significados não explícitos, ao nível das
mentalidades, das ideologias.
O desafio do projeto residiu na
construção de um roteiro que pudesse, de forma didática, conduzir o
espectador pelos caminhos de luzes e sombras que permeiam a história do
Brasil, segundo uma abordagem que privilegiasse a imagem fotográfica.
Uma forma de dar um rosto, uma imagem, uma feição concreta aos cenários,
personagens e fatos de uma história que, como todas as histórias,
continua a ser, quase que exclusivamente, pensada e interpretada a
partir do signo escrito. Um percurso iconográfico, enfim, onde
imagens-síntese e micro-histórias se articulam e dialogam visando à
construção da imagem da nação. Trata-se de um olhar sobre o Brasil,
como, obviamente, existem muitos outros olhares, outras imagens e outras
leituras.
Neste ano em que se comemora o centenário da
inauguração da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, destacamos uma dessas
imagens-síntese que registra um aspecto da dramática implantação de uma
ferrovia no interior da floresta amazônica. Trata-se de uma empreitada
de gigantes levada a cabo entre 1907 e 1912 e que custou a vida de
milhares de trabalhadores vitimados pela malária, disenteria e outras
moléstias tropicais. Dana Merrill, fotógrafo norte-americano, foi
especialmente contratado para a documentação das obras da ferrovia. A
imagem que se vê registra aspecto do deslocamento dos trilhos da Madeira
Mamoré Railway (Estrada de Ferro Madeira-Mamoré) em função de
deslizamento de aterro causado pelas fortes chuvas e inundações que
assolavam a região.
A ferrovia, construída na fase áurea da
borracha, ligava Porto Velho a Guajará Mirim, numa distância de 370
quilômetros, aproximadamente, por via fluvial e onde existem cerca de 20
acidentes do rio, entre cachoeiras, corredeiras e saltos. Sua
implantação se deveu ao compromisso assumido pelo Brasil de conceder uma
passagem para a Bolívia sobre o Rio Madeira — episódio que ficou
conhecido como “Questão do Acre”. O objetivo era permitir o escoamento
da borracha até Porto Velho e, daí, seguir por via fluvial até encontrar
o rio Amazonas, por onde prosseguia o trajeto até alcançar o Oceano
Atlântico, tal como foi consignado pelo Tratado de Petrópolis, em 1903.
Desde
o século XIX os ingleses levaram sementes de seringueiras (Hevea
Brasiliensis) para suas colônias do sudeste asiático, e as plantaram
sistematicamente em terrenos onde vingaram bem. Graças a um planejamento
eficaz, a borracha asiática chegou ao mercado internacional derrubando
os preços da borracha da Amazônia. Decorre da crise da borracha a crise
da própria ferrovia que, aos poucos, foi sendo desativada.
Cem
anos nos separam do primeiro apito do trem que, apesar de todo o
sacrifício de recursos e vidas, chegou tarde ao destino. Em 2005, a
ferrovia foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional e, em fevereiro deste ano, foi instalado o Comitê
Pró-candidatura da EFMM a Patrimônio Mundial da Unesco.
*Boris
Kossoy é coordenador do livro “Um olhar sobre o Brasil: a fotografia na
construção da imagem da nação: 1833-2003” (Objetiva) e curador da
exposição homônima de fotos, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake. É
professor titular do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicações
e Artes da USP e autor de “Fotografia e História” (Ateliê Editorial) e
“Dicionário histórico-fotográfico brasileiro” (IMS), entre outros livros
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