Liberdade de expressão e preservação da memória: as principais
propostas das biografias históricas estão sendo ameaçadas pela lei. É o
que afirmam os escritores Mário Magalhães e Audálio Dantas, que falaram
sobre os desafios de escrever uma biografia não autorizada durante o Congresso Global de Jornalismo Investigativo.
Foto: Ariane Godoi
Para Audálio -- autor do livro que conta a história do jornalista Vlado Herzog --,
o pagamento de 10% sobre o valor das vendas para biografados ou
familiares e empresários é "uma ação contra a liberdade de expressão".
Para escrever As duas guerras de Vlado Herzog, o jornalista foi procurar informações sobre a vida de seu personagem no Arquivo Nacional.
"Eu tinha em mãos a autorização da família para ver os documentos, mas
me disseram que eu precisava apresentar o atestado de óbito. Eu me
recusei a entregar um documento falso. Herzog não me matou. Ele foi
morto e torturado", disse. Enfim, Audálio procurou o Ministro da Justiça
e conseguiu a autorização.
O escritor contou também as dificuldades que enfrentou para encontrar
informações dentro do próprio Arquivo. "Muitos documentos estavam
escondidos e muitos outros ainda estão. Entre maio e dezembro de 1975,
praticamente não existem documentos sobre Vlado, apenas algumas
reportagens pobres e documentos manipulados sobre o suicídio", relembou.
Audálio disse ainda que a maioria dos documentos a que teve acesso eram
falsificados. "A ditadura continua presente em várias instâncias da
República Democrática do Brasil", concluiu.
Autor da biografia de Marighella,
Mário Magalhães considera "muito graves" as condições que a legislação
oferece para a publicação de obras biográficas sobre figuras públicas. O
escritor foi enfático ao dizer que "Marighella teve uma vida de tirar o
fôlego e eu tinha que tirar o fôlego do meu leitor. Para isso, eu
recebi autorização da mulher e do filho dele". A boa vontade da esposa,
no entanto, é caso raro. "Nem sempre é assim, mas a família de
Marighella sabe que a história dele não pertence à sua mulher, ao seu
filho ou a mim. Pertence ao Brasil".
De acordo com a legislação brasileira,
não se pode escrever uma biografia que atinja a moral e boa fama de
pessoas pública. "O Estado não pode proibir alguém de contar a história
de uma pessoa pública, com projeção pública", opinou Mário. "Tem
guerrilheiras que enfrentaram a família e foram para as ruas lutar.
Hoje, a família, com respaldo da lei, não autoriza que se escreva sobre
essas mulheres. É esse tipo de riqueza que se perde", ilustrou.
Mário relembrou também o caso do pedreiro Amarildo de Souza,
desaparecido há três meses, quando foi levado por policiais até a
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha para averiguação. Mais
de 20 PMs que serviam na base daquela UPP estão sendo investigados sob
suspeita de tortura, assassinato e ocultação de cadáver.
A reflexão de Mário reforça sua opinião sobre as falhas na lei: "Hoje
faz três meses do desaparecimento do Amarildo. O major Edson Santos, da
Rocinha, é suspeito, junto com outros policiais, de torturar, matar e
ocultar o cadáver daquele pobre diabo. O major Edson é uma figura
pública, mas, de acordo com a lei, você só pode escrever uma biografia
sobre ele se ele autorizar e, ainda assim, nas instâncias que ele
quiser. É o moralismo retórico".
O trabalho de escrever uma biografia é extenso e pode durar anos.
Para conseguir concluir seu livro, Mário se afastou do dia a dia da
redação. Ao ser perguntado sobre as ferramentas básicas para ser um bom
jornalista investigativo, ele é rápido: "É preciso saber contar
história. Jornalistas, não menosprezem o talento de saber contar uma boa
história".
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